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O efeito do vento na seletiva olímpica de natação


Por Ricardo Peterson Silveira27/04/2021 17h00

Créditos da foto: Sátiro Sodré/SSPress/CBDA


Entre os dias 19 e 24 de abril de 2021, os principais nadadores e nadadoras do Brasil estiveram reunidos(as), no Parque Aquático Maria Lenk, para a seletiva olímpica de natação, rumos aos Jogos de Tóquio. A piscina deste icônico complexo esportivo, construído para os Jogos Panamericanos de 2007, é, indiscutivelmente, uma das melhores piscinas do país. No entanto, competições em piscinas abertas estão suscetíveis às condições climáticas e podem influenciar nos resultados dos atletas, que brigam por centésimos de segundos, na busca por um índice olímpico.

Essa era uma preocupação minha desde o ano passado, quando foi anunciada uma seletiva única. Algo inédito para o nosso país e que poderia colocar na “roleta russa” o trabalho de cinco anos de nadadores, treinadores e diversos outros profissionais envolvidos em uma preparação olímpica. Não me parecia razoável contar com a sorte ou com a fé, sabendo da aleatoriedade envolvida quando o assunto é condição meteorológica. Cabe, porém, destacar o esforço da CBDA e do COB na realização desta seletiva, em um contexto crítico de pandemia, que certamente pesou na escolha do local devido ao fechamento de piscinas por todo o país, reduzindo o número de opções disponíveis para a competição.

O objetivo desta postagem não é criticar estas entidades, que tanto se esforçam para o desenvolvimento do esporte brasileiro, mas tentar compreender como as condições climáticas podem ter influenciado nos resultados dos atletas, especialmente nos primeiros dias de competição, sob o ponto de vista da biomecânica e da bioenergética.


Determinantes do desempenho na natação

A velocidade de nado depende da razão entre a potência metabólica e o custo energético (di Prampero, 1974; Peterson Silveira et al., 2019):


v = E'tot/C [Equação 1]


Em que E’tot representa a potência metabólica (em Watts), ou seja, a taxa de dispêndio energético proveniente de vias aeróbicas e anaeróbicas; e C representa o custo energético (em J/m), ou seja, a quantidade de energia necessária para percorrer cada metro.

O custo energético é um indicador de economia que depende da mecânica do nado, mais especificamente do arrasto hidrodinâmico (força de resistência oferecida pela água ao deslocamento de um corpo) e da eficiência propulsiva (fração da potência mecânica utilizada na propulsão):


C = Arrasto total/eficiência geral × eficiência propulsiva [Equação 2]


Ou seja, um aumento no arrasto tem impacto direto tanto no custo energético quanto na velocidade de deslocamento de um nadador. A relação entre velocidade e arrasto hidrodinâmico não é linear, como já discutido neste espaço anteriormente, de modo que o arrasto aumenta, aproximadamente, de modo proporcional ao quadrado da velocidade de nado (Figura 1).

Figura 1. Relação entre arrasto hidrodinâmico e velocidade de nado para dois nadadores de alto nível (Toussaint e Truijens, 2005).

Isto significa que, ao mesmo tempo em que um aumento na velocidade de nado leva a um aumento no custo energético (devido à magnitude do arrasto hidrodinâmico), a redução no custo energético é uma das principais estratégias para a melhoria do desempenho de nado a longo prazo (Equação 1). Esta redução no custo energético se dará, principalmente, por um aumento na eficiência do nado e/ou uma redução no arrasto hidrodinâmico (e.g. melhor postura e posicionamento do corpo na água). Mas, e se o ambiente não for controlado, o que pode acontecer?

Ao se deslocar sobre a camada limítrofe, na interface entre a água da piscina e o ambiente externo, o vento cria o que chamamos de tensão de cisalhamento do vento, que é uma medida de transferência de energia cinética em razão do movimento relativo da atmosfera e a água. Desta forma, a tensão de cisalhamento do vento é capaz de deslocar a massa d’água a uma determinada velocidade, dependendo da sua magnitude (Figura 2).

Figura 2. Interação do vento com a superfície da água, criando tensões de cisalhamento.

Esta tensão de cisalhamento pode ser calculada da seguinte forma:

t = d × Cd × u²

Em que "t" é a tensão de cisalhamento do vento, "d" é a densidade do ar e "u" é a velocidade do vento. Assim, sabendo que a densidade do ar é aproximadamente 1,22 kg/m³ e que o coeficiente de arrasto da interação entre o vento e a superfície da água será de aproximadamente 0.0013, podemos estabelecer a curva da tensão de cisalhamento do vento ao longo de um espectro de velocidades do vento ao longo dos dias de competição, como ilustrado na Figura 3.

Figura 3. Tensões de cisalhamento do vento ao longo da seletiva olímpica de natação, entre os dias 19 e 24 de abril de 2021, no Rio de Janeiro.

Podemos observar que nos dois primeiros dias da seletiva olímpica (19 e 20/04), a tensão de cisalhamento do vento foi aproximadamente duas vezes maior do que nos últimos dois dias (23 e 24/04). Você deve estar se perguntando agora: é possível quantificar em termos de tempo, o quanto os atletas foram prejudicados ao nadarem em piscina aberta, com influência do vento sobre a superfície da água? É difícil de dizer, pois não encontrei estudos na literatura investigando os efeitos da tensão de cisalhamento do vento sobre a velocidade de nado. É algo que talvez possa ser feito por meio de simulações e de fluidodinâmica computacional (CFD). Mas, assumindo que, na pior das hipóteses, a tensão de cisalhamento do vento foi capaz de transferir energia cinética para a água, deslocando-a a 0,05 m/s, podemos estimar o impacto sobre o arrasto hidrodinâmico para um espectro de velocidades de nado, considerando um nadador que tenha um fator de arrasto k de 26,03, condizente com um nadador de alto nível do sexo masculino (Toussaint e Truijens, 2005; Peterson Silveira et al., 2019). Para realizar este exercício mental, precisamos assumir as seguintes condições para este nadador, em uma determinada prova e em um determinado dia:

1) A potência metabólica na prova será a mesma, independentemente das restrições do ambiente;

2) A potência mecânica exercida será a mesma, independentemente das restrições do ambiente;

3) A eficiência propulsiva será a mesma, independentemente das restrições do ambiente;

Desta forma, podemos criar um nadador fictício, para estabelecer a curva da relação arrasto vs. velocidade de nado, quantificando o efeito do vento sobre essa relação (Quadro 1).

Quadro 1. Efeito do fluxo d'água a 0,05 m/s sobre o arrasto hidrodinâmico de um nadador hipotético, em um espectro de velocidades de nado.

Ou seja, para nadar a uma mesma velocidade, contra o vento, um nadador enfrentará um arrasto entre 4 e 10% maior, dependendo da sua velocidade de nado. E isso, conforme apresentado na Equação 2, levará a um maior custo energético (menor economia de nado).


Se considerarmos que o arrasto que um nadador é capaz de enfrentar ao longo de uma prova é o mesmo, com ou sem vento, podemos calcular o impacto da tensão de cisalhamento sobre os tempos a cada 50 m, assumindo que ela desloca a água a 0,05 m/s (Quadro 2).

Quadro 2. Efeito do fluxo d'água a 0,05 m/s sobre os tempos a cada 50 m de um nadador hipotético, em um espectro de velocidades de nado.

Percebe-se que em uma prova de meio fundo ou fundo, nadando a uma velocidade de 1,6 m/s, o impacto de cada piscina nadada contra o sentido do vento será de 1 segundo. Ou seja, assumindo essas condições, poderíamos estimar um tempo na casa dos 4:12 para o nadador Brandon Almeida, na prova dos 400 m Medley (dia 19/04). Na prova dos 100 m peito masculino, realizada no mesmo dia, poderíamos estimar um tempo na casa dos 58.5, para o nadador Felipe Lima, e na casa dos 59.1, para o nadador João Gomes Jr.

É claro que são apenas estimativas e jamais saberemos o tempo que os(as) nossos(as) atletas teriam feito, se a competição fosse realizada nas mesmas condições nas quais os Jogos Olímpicos serão realizados, mas essa é uma lição que precisa ser levada em conta para as próximas seletivas: não podemos ficar nas mãos da aleatoriedade das condições climáticas. Temos piscinas cobertas de altíssimo nível na UNIFA (RJ), no Centro de Treinamento Paralímpico (SP), no Esporte Clube Pinheiros (SP) e na UNISUL (SC). Havendo a possibilidade, estas precisam ser as piscinas em uma competição em que os atletas estão competindo contra o cronômetro e não disputando medalhas. Cabe ressaltar que esta postagem não é um estudo científico, pois é baseado em estimativas e não foi revisado por pares, mas traz dados razoáveis sobres os impactos que as condições climáticas tiveram sobre desempenho dos atletas. Outra limitação é que não considerei o impacto dessas condições sobre a termorregulação dos atletas, que pode não ser desprezível.

Considerando o exposto acima, me parece legítimo o movimento dos atletas para que haja uma segunda chance, em tomada de tempo oficial marcada para o dia 12 de junho. Fica o meu apelo ao COB e à Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos para que os nossos atletas possam mostrar do que são capazes, dentro de condições mais favoráveis.

ricardo peterson silveira

Pesquisador de pós-doutorado nas áreas da biomecânica e bioenergética da natação, na Université Rennes 2 (França) e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil).

Professor de Educação Física e Doutor em Ciências do Exercício Físico e do Movimento Humano pela Universidade de Verona (Itália) e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), com formação complementar na Universidade do Porto (Portugal) e na Universidade de Calgary (Canadá).